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O INFERNO SÃO OS OUTROS

(Sobre ANTES QUE O DIABO SAIBA QUE VOCÊ ESTÁ MORTO,
filme de Sidney Lumet)

        Metade dos seus problemas seria resolvida se você obtivesse o dobro do seu salário; o problema é que essa metade duplicaria se isso acontecesse.
        Não fosse pelo enorme contingente de pessoas endividadas, a frase seria hilária, e, como toda a máxima, não possui qualquer possibilidade de averiguação matemática, mas, no mínimo, encerra uma verdade sobre a natureza humana. Além disso, por seu tom irônico, poderia servir como epígrafe do último filme de Sidney Lumet: “Antes que o diabo saiba que você está morto”.
        O filme é contundente, seu ritmo alucinante. Já no início dele o espectador vê-se “fisgado” por uma cena de sexo audaciosa. Hank e Gina, sua mulher, transam numa posição, digamos assim, pouco ortodoxa. Hank a pega por trás (ela de joelhos), e assiste ao ato através de um espelho da suíte em que estão hospedados. Terminado o sexo, comenta a ela crer que a performance ocorreu por estarem, de férias, no Rio de Janeiro – como se a energia tropical emanada de nosso país tivesse lhes gerado esse atributo: trepar bem. Hank e Gina são um casal típico de americanos, daqueles que, não seria de duvidar, ainda pensam que a capital do Brasil é Buenos Aires e, à exceção do Rio e de São Paulo, as demais cidades brasileiras não passam de palafitas onde, nós, selvagens tupiniquins, andamos de tanga e nos locomovemos através de cipós. Carnaval, samba e mulatas são a ordem do dia (todos os dias). Exageros à parte, escrevo isso porque o filme dá margem a pressupostos dessa natureza; as únicas referencias feitas a latinoamericanos (e cidades latinoamericanas) ora estão ligadas a sexo, ora a drogas ou traficantes. A título de ilustração há uma cena onde a mulher de Hank – ao cogitar mudarem-se para o Brasil – confessa acreditar que não há diferença entre a língua espanhola e o português.
        Se o filme é elucidativo por mostrar que cidadãos norteamericanos, medianamente instruídos, ainda são ignorantes quanto ao que se passa no resto do mundo (e principalmente na América Latina), torna-se interessante ao evidenciar o quão a sociedade estadunidense é composta, em parte, por indivíduos que agonizam existencial e financeiramente, padecem com um custo alto por viver num país que, apesar de ter alcançado um nível avançado de industrialização, é perverso com aqueles que fracassam. O fato de uma nação relativamente jovem ter se tornado, em menos de um século, um dos países mais ricos do planeta, legou a sua população um paradoxo. É uma sociedade economicamente abastada, mas os padrões culturais e de conduta moral de seus cidadãos rolaram ladeira abaixo. É disso que o filme se vale. Seu principal tema é a miséria material e, principalmente, espiritual dos personagens - seja pela expectativa de castigo advindo dos atos ilícitos que cometem, seja pela sofrível e caustica relação com seus pares -, a perda de seus valores humanos e as conseqüências geradas por esse fato. Nela são mostrados sujeitos que, em prol de realizarem seus desejos, abstém-se de reger seus atos por padrões mínimos de civilidade e ética. No filme, mesmo os mais próximos, em geral, são motivo de infortúnio, transtorno e achacamento. Enfim a famosa declaração de Sartre, “o inferno são os outros”, seria um bom slogan para a narrativa.
        A história trata basicamente de um grande equívoco - um assalto malogrado ¬ -, ocorrido no seio de uma família.
        Hank (Philip Seymour Hoffman) e Henry (Ethan Hawke) são irmãos e estão passando por apuros financeiros. Henry é um fracassado. Mal empregado, deve três meses de pensão a ex-esposa – para quem perdeu todo e qualquer respeito -, e não consegue suprir financeiramente as demandas da filha. Hank, o irmão mais velho, apesar de ganhar um salário anual de seis dígitos, é viciado em heroína e, em benefício próprio, desvia dinheiro da corretora de imóveis em que trabalha. Casado com Gina (Marisa Tomei), ele também se sente derrotado por não cumprir com os anseios dela, e vice-versa. Há uma inesgotável insatisfação que ronda o casal. Hank, em virtude de uma iminente auditoria na empresa, intui que tudo está prestes a desmoronar em sua carreira; pensa então ter encontrado a solução para os seus problemas e os do seu irmão: um roubo. O plano é arrojado, e Hank ilude-se acreditar que os riscos são pequenos. Planeja assaltar uma pequena joalheria localizada num shopping de um subúrbio novaiorquino, para em seguida vender as jóias a um interceptador; planeja, na verdade, aliciar seu irmão mais novo a executar o plano. Além do risco, há um “pequeno” problema: a joalheria é do pai deles.
        Na hora da ação, tudo dá errado. Hank e Henry não contavam que a mãe deles estaria, por um contratempo qualquer, substituindo a idosa funcionária (que trabalha na loja). Henry, inseguro quanto a execução do plano, convida um amigo para ajudá-lo. Durante o roubo não entra na joalheria, fica (com o carro ligado) do lado de fora, a espera do parceiro. Descuidado, o assaltante, ao recolher as jóias, permite que a mãe deles o baleie, ele devolve o tiro, mas não a mata, e, quando alcança a porta para fugir, ela o acerta em cheio. A partir desta cena, serão apresentadas três seqüências: alguns dias anteriores ao assalto nas vidas de Hank, Henry e do pai deles, Charles Hanson (Albert Finney), filmadas individualmente. Só então é que as trágicas conseqüências do assalto se desenrolarão, trazendo a tona as mágoas e ressentimentos que rondam os Hanson.
        Não bastasse o inusitado (e terrível) fato de dois irmãos estarem envolvidos num assalto a joalheira dos próprios pais, o roteirista carregou a mão ao acrescentar mais alguns perversos fatos na vida dos Hanson. Gina, a esposa de Hank, é amante de Henry; e a relação entre os irmãos também é carregada de ambivalência. Hank costuma escarnecer quanto aos dotes intelectuais do irmão mais novo; para ele, Henry não passa de um fracassado. Por outro lado, o fato de Henry trair o irmão com sua própria mulher parece ser uma espécie de compensação. Afora isso, numa cena posterior, o pai deles mostra-se mordaz quanto ao caráter de Henry. “Sempre foi um fraco”, manifesta-se publicamente em relação a ele. Enfim, o desrespeito, a traição, as ofensas e vilanias são a moeda corrente entre os Hanson. Não por acaso a tragédia os abaterá de forma fulminante.
        Dias antes ao assalto, há um episódio que parece encerrar emblematicamente seu viés psicológico. Após a apresentação de uma peça teatral de Danielle, filha de Henry, seus familiares vão felicita-la. Henry, sua ex-esposa e seus pais a congratulam. Após os cumprimentos, e na frente de todos, Danielle solicita a Henry que custeie uma viagem com suas colegas. Ao ser informado do alto custo disso, ele sente-se embaraçado, e sua ex-esposa, ao invés de tentar atenuar seu constrangimento, emite-lhe um sorriso de inequívoco escárnio, do tipo quero-ver-você-sair-dessa - e é o fato de não possuir dinheiro para custear a viagem da filha que irá levá-lo a aceitar o convite de Hank para executar o roubo. A cena evidencia o tom recorrente da relação entre seus personagens. Ceticismo e desdém são constantes em seus relacionamentos. A ex-exposa não se compadece com Henry, não se entristece por vê-lo quebrado (e falhar como pai, como provedor), muito pelo contrário, encontra prazer em seu fracasso. Nietzsche, na Genealogia da moral, afirma que não existe festa (poderíamos dizer prazer) sem algum tipo de crueldade. Lumet assinaria embaixo, e reforça essa idéia, insistindo em nos mostrar que não é aos estranhos que cometemos as maiores atrocidades, mas justamente as pessoas mais próximas, as que fazem parte do nosso convívio.
        Vale também observar que o fato do filme girar em torno de um assalto, de algo ilícito não é gratuito. Seus tons escuros, as sombras e a expectativa da punição, sustentam a tensão que o filme gera. A escolha de uma joalheria – não há objeto mais carregado de fetiche (e biologicamente supérfluo) que uma jóia -, contribui para reforçar algo que parece ser um pressuposto básico da narrativa: o dinheiro (no caso, a falta dele), numa sociedade capitalista, irá engendrar-se indissociavelmente aos psiquismos que regem nossas condutas cotidianas. Ilustrando a máxima que abre o presente texto, poderíamos até cogitar que, caso o assalto desse certo, em pouco tempo, os personagens talvez estivessem de volta aos mesmos apuros financeiros aos quais se encontravam anteriormente a ele. “Você não imagina o que as pessoas são capazes de fazer por dinheiro. O mundo é um lugar perverso; uns ganham em função disso, outros são destruídos”, essas palavras são do interceptador - velho conhecido de Charles - que, visitado por Hank antes do assalto, receberia as jóias caso o roubo não malograsse. E são ditas a Charles quando esse vai, na busca pelos culpados, perguntar se o sujeito sabe alguma coisa a respeito do roubo de sua joalheria. As palavras parecem resumir de forma precisa o que Lumet tenta nos dizer com a história. O filme é uma tragédia, uma sucessão de equívocos e fatos terríveis. Poderíamos até nomeá-lo como um “Édipo às avessas”, contudo, apesar de contar com atores excelentes, personagens bem construídos e possuir um ritmo eletrizante (do início ao fim), peca pelo excesso de ceticismo, pelo caráter demasiadamente pernicioso de seus protagonistas.
        Jean Paul Sartre em um pequeno ensaio denominado “Vladimir Nabokov: o engano”, pergunta se se Nabokov é tão superior aos seus romances porque os escreve. Critica-lhe pelo excesso de escárnio. Atribui isso ao fato do escritor ter pais espirituais muito velhos (Dostoievski, seria o principal deles), e, de alguma forma, desrespeitar (diferente de seus “pais”) seus próprios personagens, desacreditanto-os enquanto descreve suas peripécias. O mesmo tipo de crítica poderia ser feita a Lumet em seu último filme. Ao final de “Antes que o diabo saiba que você está morto”, tem-se a sensação de que nos encaminhamos para ver a existência humana como uma causa perdida. No filme, nada resta de digno, de nobre, de saudável nas relações entre as pessoas. Seu excesso de pessimismo beira ao caricatural. “A vida não tem sentido” é a conclusão na qual Andy chega ao drogar-se; mas chega a ela não por uma reflexão filosófica (feito um existencialista sartreano). Na verdade não é a vida que carece de sentido, é a vida de Hank que perdeu o significado, e foi um somatório de escolhas, péssimas escolhas, que o levaram até isso. É a percepção de seu fracasso, da vacuidade de seu cotidiano, do caráter desprezível da relação com seus semelhantes que o fazem chegar a essa constatação.
        Lumet é impiedoso, não deixa pedra sobre pedra; seus personagens se deblateram em meio ao sofrimento, e não há uma viva alma decente na história narrada; por certo, num mundo assim, o diabo triunfaria. Todavia - tal qual Sartre em relação a Nabokov -, devêssemos fazer uma indagação a ele: se os homens são assim tão sombrios, tão univocamente virulentos, qual o sentido para o senhor, aos oitenta e poucos anos, continuar a dirigir seus filmes?

Ficha técnica:
Antes que o diabo saiba que você está morto

Título Original: Before the Devil Knows You’re Dead
Direção: Sidney Lumet

Elenco:
Philip Seymour Hoffman (Hank Anson)
Ethan Hawke (Henry Anson)
Albert Finney (Charles Hanson)
Marisa Tomei (Gina Hanson)