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OS QUE LOGRAM ÊXITO AO FRACASSAR

(Sobre PRENDA ME SE FOR CAPAZ, filme de Steven Spielberg)
"O verdadeiro mistério do mundo está no visível e não no invisível”.
Oscar Wilde

        Lendário em suas palavras, John Houston, referindo-se a seu filme “A arca de Noé”, deu uma de suas declarações impagáveis. Afirmou que seu elenco era tão ruim, que os melhores atores eram os gorilas. Esta é uma das inúmeras preciosidades arroladas no brilhante livro “O Filme” (sic), de Lilian Ross – autora cujo texto, além de excelente, foi precursor, juntamente com Truman Capote (A Sangue Frio), do newjournalism - um tipo de narrativa que alia ficção a realidade.
        Cito as palavras de Houston porque elas me fazem lembrar que grandes cineastas, creio que sem exceções, são pessoas inteligentes e obstinadas, ou seja, cientes do que tem de fazer para chegar lá, cientes também do material humano que possuem para trabalhar e, mais que isso, tem consciência de que o melhor do que irão produzir em suas carreiras muitas vezes pode passar batido (e é o que em geral acontece) pelo grande público (impossível não lembrar o brilhantismo de Oswald de Andrade – o principal intelectual do modernismo brasileiro - quanto a isso. Afirmava ele que “a massa ainda irá comer o biscoito fino que fabrico” - o fato de sua profecia ter-se comprovado um equívoco não lhe retira o brilho). Steven Spielberg não se faz exceção, e o filme “Prenda me se for capaz” (Catch me if you can) é, opinião pessoal, seu melhor filme, apesar de, aqui no Brasil, não ter se tornado uma de suas produções mais conhecidas; ou seja, assim como o melhor de Oswald, a “massa” não (a)provou o “fino biscoito” de Spielberg.
        O filme é, no mínimo, um abecedário para psicólogos. Explico-me. Antes, porém, para quem não o viu ainda, uma breve sinopse sobre ele.
        Os Abagnale são uma família de classe média norte-americana. Pai, mãe e filho desfrutam o ideário estadunidense na década de sessenta: habitam uma bela casa, possuem um Cadillac, o menino estuda num colégio particular, etc. Contudo, chegada à adolescência de Frank Abagnale Junior - a partir de agora Frank Jr. -, o pequeno núcleo familiar começa a deteriorar-se. O pai, Frank Abagnale, fracassa como empreendedor; sonega impostos (algo extremamente vexatório para um norteamericano) e endivida-se com a Receita; seu crédito bancário é bloqueado, e eles tem de deixar uma bela residência para se entocar num pequeno apartamento. Lá, a mãe, Paula Abaganale, é flagrada por Frank Jr. cometendo adultério - só não é pega no ato por detalhe; mas Frank Jr., não sem certo desgosto, vê o presidente do Rotary Club (clube do qual seu pai faz parte) sair de dentro do quarto de seus pais com Paula a dissimular o acontecido, afirmando que estava a mostrar os cômodos do apartamento. Passado algum tempo, o inevitável: os pais, para completa desilusão de Frank Jr., se separam, e ele se vê na saia justa de ter de escolher com qual dos dois irá ficar. Seu mundo desaba; o que antes era precário torna-se insuportável. Ele não consegue enfrenta a situação e foge. A partir daí, irá tornar-se um estelionatário, um fraudador compulsivo, falsificando cheques e sua identidade, e exercendo profissões (sem qualquer qualificação para elas) a seu bel prazer – sempre com seu antagonista, Carl Hanratty (Tom Hanks), inspetor do FBI, encarregado do setor de fraudes, em seu encalço. Frank Jr. primeiro torna-se um piloto de aviões, depois um médico cirurgião até exercer advocacia na empresa de seu sogro. Isso tudo, pasmem (porque baseado em fatos reais), antes de completar dezoito anos.
        Freud costumava afirmar que ninguém consegue fugir de seu “romance familiar”, e o filme não deixa dúvidas de que esse é o eixo através do qual as várias situações encenadas giram - aliás, é recorrente na obra de Spielberg os conflitos advindos da relação pai e filhos (Inteligência Artificial, Guerra dos Mundos, Minority Report, etc). Contudo o mérito de “Prenda-me se for capaz” não é basear-se na premissa freudiana, mas sim a falta de maniqueísmos moralizantes com a qual foram compostos seus personagens; é a construção minuciosa do protagonista e de seu antagonista, Carl Hanratty. O personagem não deixa nada a dever ao protagonista. É um obsessivo. Em vários eventos é demonstrada sua total falta de humor; não lhe interessam piadas, anedotas, chistes (contados pelos colegas); apenas lhe diz respeito cumprir sua função. E capturar Frank Jr., a partir de certo momento, parece ser o único significado de sua existência; isso porque, numa das cenas primorosas no início do filme, Frank Jr. o desmoraliza profissionalmente. Na ocasião, Frank Jr. consegue, ao ser flagrado por Carl em um quarto de hotel (com todos os apetrechos necessários a falsificação de cheques e certificados de identificação), persuadi-lo de que é um agente do Serviço Secreto Americano e não o fraudador a quem Carl busca capturar. A cena é de uma peculiaridade singular, e a atuação de Di Caprio é impecável.
        O pai de Frank Jr. não é tirano, perverso ou algo cujo caráter pernicioso pudesse gerar um perverso, mas é leviano, comportamento que irá comprometer o futuro do filho. Um único ato seu, evidenciado deliberadamente já no início do filme, denuncia o devir (similar ao do pai) de Frank Jr. Nesse dia ele é acordado pelo pai, que lhe traz o café da manhã. O pai argumenta que ele, Frank Jr., tem algo mais importante a fazer, naquela manhã, do que ir a aula: tem de se fazer passar por seu motorista. Isso para que Frank Abagnale possa, ao chegar ao banco (em que pedirá um empréstimo), ostentar que é próspero. Afora a singularidade da situação – um pai incitar um filho a gazetear aula para fins ilícitos -, Frank Abagnale, em frente ao banco, faz uma brincadeira com Frank Jr., brincadeira que é na verdade uma metáfora do filme. Pergunta-lhe porque os Yanks – time pelo qual torcem ? sempre vencem os times adversários. Frank responde que é porque eles possuem um grande lançador, mas o pai lhe corrige dizendo que os Yanks sempre vencem porque seus oponentes não conseguem deixar de olhar seus uniformes. Pronto. Está armada a cilada para o filho. A aparência, aquilo que é visível, aos olhos do seu pai, é mais importante do que todo o resto. Não por acaso a primeira profissão que Frank Jr. irá escolher é ser piloto de uma companhia aérea; profissão conhecida por obrigar seu contingente portar um uniforme impecável.
        A edição do filme é excelente. Numa das seqüências, em que são intercaladas as vidas dos protagonistas, percebe-se o abismo existencial que separa Frank Jr. e Carl -, a natureza e a existencia diametralmente opostas que vivenciam torna-se clara. As cenas mostram de um lado, Frank Jr. assediando uma famosa modelo num glamouroso hotel e, após adentrarem seu quarto, convence-a passar a noite com ele por U$ 1.000,00 (pagamento obviamente efetuado através de um cheque fraudulento); do outro, Carl, solitário, numa lavanderia self service, em meio à noite e ladeado por duas velhas senhoras, esperando que suas roupas fiquem prontas. E não bastasse o contraste do que vivenciam, Carl ao recolher suas roupas (em sua maioria camisas brancas), percebe que elas estão manchadas por um pequeno blusão vermelho, que uma das senhoras se esquecera na máquina que ele está usando.
        O filme, além de balancear cenas de humor com drama e densidade existencial, é rico em metáforas, eventos e atitudes que ilustram e ampliam a individualidade e o caráter peculiar dos protagonistas. Cito duas delas apenas a título de ilustração: Frank, mimético em relação a sua natureza – cuja característica principal é ter tido sua identidade extraviada quando seus pais se separam -, tem o hábito de retirar o rótulo das garrafas; retira-lhes enfim a identidade, fazendo-as cair no mesmo plano que ele. E, não por acaso, a cidade para onde ele vai, após deixar os EUA (a fim de não ser preso), é Montrichard, na França; justamente a cidade natal de sua mãe, e onde seu pai a conhecera. É como se ao ser-lhe inviabilizado uma identidade em seu país de origem, ele fosse buscá-la inconsciente e desesperadamente em algum lugar que fizesse referencia a seu passado, onde tudo começou. “Há aqueles para os quais o fracasso é um êxito”, a sentença é freudiana, e Frank Abagnale é o tipo de sujeito que a endossaria de forma exemplar. É um sonhador, e como todo sonhador, presa narcísica de seus autoenganos, da cegueira, da imagem otimizada que faz de si mesmo. Isso está evidenciado diversas vezes no filme: em sua conduta equivocada com o filho, em sua recorrente penúria financeira, na incapacidade de reconquistar sua mulher, nas fórmulas feitas e nos clichês que usa para gerir sua própria existência. Contudo, há também aqueles para os quais o êxito é um fracasso; paradoxo que ganha corpo no papel de Frank Jr.; pois não fosse a empatia de Carl por ele. – empatia que o faz convidá-lo para trabalhar no Departamento de antifraudes norteamericano -, Frank Jr. continuaria errando de profissão em profissão, de fraude em fraude, mas, ainda que lograsse êxito nesse tipo de intento, nunca se daria por satisfeito, nunca iria encontrar efetivamente sua identidade.
        A ficção de baixa qualidade se vale de exageros e clichês para tentar nos envolver; a de alta lança luzes sobre a realidade, e consegue isso através de personagens bem estruturados e eventos minuciosa e coerentemente selecionados; o que, de certa forma, pode nos tornar mais aptos a enfrentar as vicissitudes de nossas existências. “Prenda-me se for capaz”, a um expectador atento, está longe de ser apenas mais um filme sobre protagonistas levianos e inteligentes e seus algozes obstinados; sua proximidade com pessoas de carne e osso e o psiquismo que confere verossimilhança a seus personagens elucidam alguns porquês dos recorrentes tons escuros da natureza humana.

Ficha técnica:
Prenda-me se for capaz

Título Original: Catch Me If You Can
Direção: Steven Spielberg

Elenco:
Leonardo DiCaprio (Frank Abagnale Jr.)
Tom Hanks (Carl Hanratty)
Christopher Walken (Frank Abagnale)
Nathalie Baye (Paula Abagnale)